O cantinho de João Ferreira
Eu, João dos Santos Ferreira, nasci no tempo antes do 25 de abril, que era o tempo do fascismo. Desta forma posso abordar o antes, o depois, as fases mais tristes, e as mais alegres. Pelos meus 22 anos, em 1954, era o tempo mais tenebroso do fascismo, do qual vou aqui recordar quatro momentos dos mais tristes e que nunca poderei esquecer.
Em primeiro lugar, estava num lugar que não tem interesse mencionar, quando chegou a “rusga”. Essa “rusga”, que era formada por dois P.I.D.E.’s, obrigou-me a esvaziar os bolsos das calças para lhes mostrar os pertences. Algo que trazia comigo, era uma navalha de debulhar batatas, objeto ao qual torceram o nariz dizendo:
Tens sorte que a navalha é de ponta redonda, se assim não fosse partia-a a meio com este alicate! – Era a navalha com que aprontava as minhas magras refeições.
Num segundo momento, cara-a-cara com os fachos, eu trabalhava em Cascais como pintor da construção civil. Fui abordado, novamente por um P.I.D.E. que me forçou a dar-lhe uma bisnaga de brincar que havia custado quase uma hora de trabalho. Estando com um colega oriundo de Viana do Castelo, que à mesma questão não queria aceder, o P.I.D.E. ameaçou-o logo de prisão. O rapaz, ameaçado de prisão e à pistola, tal como eu, teve de se desfazer do pertence. Tenho a ressalvar que era domingo gordo de Carnaval.
O terceiro gesto que presenciei, foi junto à “Adega Machado”, no Bairro Alto: um colega de trabalho, a quem lhe era pedido para se mexer dali para fora não quis, sendo que a resposta à inatividade do mesmo, foi a quebra da cana do nariz a cassetete, tendo ficado o mesmo, logo ali num mar de sangue.
O quarto e último episódio, foi quando estava na avenida Almirante dos Reis e tinha uma mala com roupa de trabalho e ferramenta. Um agente inquiriu sobre o que a mesma levava, ao que respondi que era material de pintura e roupa também para o efeito. O P.I.D.E. disse que não era necessário abrir a mala, nem desconchavar os pertences. Foi o único dos cinco com educação, que mostrou respeito e inteligência. Este tipo de problemas, só escalaram em número até o povo se fartar e se dar o 25 de abril: esse dia maravilhoso! Já de 42 anos feitos, recordo estar a retirar as telhas e madeiras de uma vivenda para a mandar abaixo e reconstruir outra no seu lugar.
Uma vizinha chegou-se a mim e disse:
O governo de Marcelo já caiu. – E aí inspirei um grande alívio e senti a nação a libertar-se e a renascer. O mais lindo de se presenciar, foram os cânticos de Paulo de Carvalho: o “E Depois do Adeus”, com a resposta “Grândola Vila Morena”, esta da autoria e voz de José Afonso.
Em modo resumido, dois presidentes que não foram votados: António de Spínola e Costa Gomes, viram passar seis governos que não singraram. Assim, já no tempo de Álvaro Cunhal, que foi “ministro sem pasta”, conhecemos o primeiro primeiro-ministro deste arco, novo e constitucional, Mário Soares, filiado ao Partido Socialista. Daí até à data, houve, contando também com Marcelo Rebelo de Sousa, ao todo, cinco Presidentes da República, tendo todos cumprido dois mandatos por inteiro.
Esta ano cumprem-se, em especial, 50 anos da “Revolução dos Cravos”, momento que em mais de nove décadas da minha vida não vi igual. Despeço-me dos meus leitores, com a esperança de conseguir passar um testemunho e este cravo de Abril.
João dos Santos Ferreira