Em Portugal existe, praticamente em todas as modalidades desportivas, uma das melhores escolas de treino desportivo do mundo e o Futebol é disso um bom exemplo: há treinadores portugueses nos melhores clubes europeus, em África (e, mais recentemente, também no Brasil); no Campeonato do Mundo, 4 dos 32 selecionadores, eram portugueses. Mas também noutras modalidades desportivas (Andebol, Canoagem, Atletismo, Basquetebol, Voleibol, etc), embora com menor visibilidade, este facto se repete: Portugal é um país exportador de treinadores de desporto.
Causou, portanto, estranheza a contratação, pelo Benfica, de um treinador alemão (por quê recorrer ao mercado externo, se temos “em casa” tão bons treinadores?), mas o impressionante percurso desportivo realizado na primeira metade da época, tanto a nível nacional como, sobretudo, a nível internacional, faz com que paremos para pensar: vamos, então, refletir sobre a função de treinador de desporto.
A formação de treinadores em Portugal
Atualmente o treinador não é um antigo praticante da modalidade, autodidata, que pouco sabia e pouco fazia; pelo contrário, é já sujeito a um processo formativo que se prolonga por toda a vida ativa, através de formação inicial e de formação contínua. Esta formação tem enquadramento legal no Decreto-Lei 248-A/2088, alterado pela Lei 106/2019 e no Despacho 5061/2010 e é assegurada por um modelo misto de partilha de responsabilidades entre o IPDJ (Instituto Português do Desporto e da Juventude) e as Federações Desportivas com estatuto de utilidade pública.
Ao IPDJ compete aprovar os cursos, a emissão dos certificados e o reconhecimento das equivalências e às Federações compete a lecionação dos cursos. As Faculdades de Educação Física e de Desporto também têm intervenção, através de um processo de equivalências dos seus planos de estudos.
Os cursos têm 3 componentes: formação geral, formação específica e estágio tendo, no total, cerca de 500 horas de carga horária, ou seja, uma época desportiva. Existem 4 níveis de treinadores (de 1 a 4), sendo o nível 4 o de maior qualificação, com um perfil de intervenção na alta competição. De referir, ainda, a necessidade de formação contínua (6 UC por cada 5 anos), indispensável para a renovação do título profissional.
A função de treinador de desporto
Dos 3 principais grupos de intervenientes no processo desportivo (dirigentes, atletas e treinadores), foram estes últimos que maior evolução qualitativa apresentaram nos últimos 30/40 anos: do antigo praticante autodidata e pouco escolarizado, evoluiu-se para licenciados em Desporto, com especialização e para antigos praticantes, com uma formação diversificada e profunda.
Aos diferentes níveis de qualificação (níveis 1 a 4), correspondem diversos perfis de intervenção, estando os treinadores de nível 1 e 2 vocacionados para intervir na formação de jovens atletas e os dos 2 últimos níveis (3 e 4) destinados à média e alta competição sénior.
Em todos os casos, competem-lhes funções comuns e competências iguais, como sejam: a liderança interna dos seus atletas (criando verdadeiras equipas, com identidade e coesão); a comunicação interna e, sobretudo, para o exterior (transmitindo mensagens adequadas e apropriadas para os diversos agentes); a valorização dos seus atletas (primeiro que tudo, como seres humanos, a que acresce a sua valorização desportiva – e isto, sejam jovens, ou adultos); o impacto social da sua intervenção (sendo figuras públicas com elevado grau de exposição, terão de “fazer passar” mensagens adequadas).
Trata-se, portanto, de uma função com caraterísticas muito diversificadas, que exige competências técnicas de elevado grau, até porque, em alta competição, o treinador, normalmente, é o coordenador de uma equipa técnica multidisciplinar (fisiologista, metodólogo, psicólogo, médico, massagista, …)
O caso de Roger Schmidt
Feitas estas considerações e para fechar a quadratura, voltamos ao caso que motivou esta reflexão. Sem qualquer dúvida que este treinador estrangeiro acrescentou valor ao nosso sistema desportivo e a colaboração de pessoas com este perfil pessoal e profissional deverá ser sempre valorizada. Por outras palavras: a qualidade é um valor absoluto que não tem pátria nem nacionalidade e deve ser sempre incrementada, porque acrescenta valor.
Mas que valor? Em que se manifesta esse sucesso?
Manifesta-se quer no sucesso desportivo, quer na forma de estar. A elevação das suas intervenções e das suas atitudes, a qualidade da sua comunicação (prometeu falar português no final da época), o não incentivar o conflito e o antagonismo, o respeito pelas arbitragens e pelos adversários e o clima de pacificação que implementou internamente e que “passou” para o exterior, são verdadeiramente notáveis. Por outro lado, os resultados desportivos alcançados e o elevado nível de espetáculo que proporciona, são bem demonstrativos das suas competências técnicas porque, sem nenhuma dúvida, grande parte do mérito é seu.
Para terminar e quer na perspetiva da melhoria quer do sistema desportivo nacional, quer na perspetiva do impacto da intervenção do treinador na sociedade (sobretudo junto das novas gerações, que tendem a assumir comportamentos dos seus ídolos desportivos – sejam estes positivos ou negativos), diremos que a qualidade não tem pátria nem nacionalidade e que pessoas destas serão sempre muito bem-vindas.
O novo selecionador nacional
O que está escrito para Roger Schmidt aplica-se ao novo selecionador Roberto Martinez: embora exista, seguramente, uma dezena (ou mesmo mais) de treinadores portugueses com condições para assumir o cargo, desejamos que esta contratação de um estrangeiro acrescente valor ao que já existe. Seja bem-vindo quem vier por bem…