Opinião
Portugal é um país de paradoxos. Ainda há não muitos anos, poucos afirmariam que o crescimento da extrema-direita viria a atingir a cifra atual, cenário que se afigurava uma miragem e confortava os que não têm memória curta e regem-se por valores humanistas. Com todos os defeitos reconhecidos, a alternância do poder entre a esquerda e a direita moderadas, PS e PSD, mantinha a governação numa linha social-democrata que poderia vir a aproximar-se progressivamente dos melhores modelos europeus.
Quando vivi na Islândia, entre 2017 e 2018, recordo-me de ter constatado que a denominada social-democracia nórdica havia de facto encontrado fórmulas para que países com poucos recursos naturais, de clima hostil e escassamente povoados se viessem a transformar em democracias sólidas que agregam o melhor de dois mundos aparentemente antagónicos: uma pujante economia de mercado e um estado social forte. Obviamente, outros fatores históricos que não escrutinarei aqui também contribuíram para esse sucesso. Inegável é que esses países, que também têm as suas imperfeições, ocupam consistentemente, ao longo das últimas décadas, posições cimeiras em todos os rankings de desenvolvimento, riqueza e bem-estar social.
No hotel onde trabalhei, numa das mais remotas regiões da Islândia, o número de empregados variava entre pouco mais de uma dezena no pico do inverno e quase quarenta nos meses de verão. Detalhe importantíssimo: a grande maioria dos trabalhadores eram estrangeiros. Em julho de 2017, partilhei uma pequeníssima casa de três quartos com um jovem australiano e uma finlandesa. Findo o verão, já em setembro, os meus coabitantes rumaram aos seus países e os meus novos companheiros passaram a ser um espanhol e uma checa. No ano seguinte nova mudança, com a chegada de um casal de polacos e uma rapariga da Eslováquia. Durante ano e meio tive ainda por vizinhos, nas duas únicas habitações ao lado da minha, bem como a viver em quartos anexos ao próprio hotel, mais checos, eslovacos e espanhóis, mas também polacos, portugueses, croatas, suecos, brasileiros, franceses, romenos, lituanos, etc., numa miríade de nacionalidades que chegaram às dezassete a trabalhar simultaneamente no hotel no verão de 2018. Somemos ainda os próprios islandeses e uma maioria de hóspedes do Reino Unido, dos Estados Unidos, da China, do Japão, da Alemanha e de Israel, com grupos também oriundos de tantos outros diferentes países dos cinco continentes e será escusado dizer que toda essa gente trazia línguas, costumes, hábitos e mundivisões diferentes.
Desde 2019 trabalho, a partir de Portugal, para uma das maiores empresas de pesca islandesas. Na nossa fábrica, nas Ilhas Westman, trabalham europeus, africanos, americanos e asiáticos. Quanto a mim, sou agora, digamos, um peixeiro. Só que ao invés de andar com uma carrinha refrigerada a percorrer as ruas do concelho para vender o meu peixinho aos conhecidos, vendo o pescado islandês, em contentores, para diferentes mercados da Europa, Médio Oriente, África e América. Graças a isso, viajo com alguma regularidade e todos os meus clientes, que estão no Egito, na Turquia, na Bulgária ou em outras paragens, não compreendem uma única palavra de português. Mas a grande maioria são boa gente, como a boa gente que encontrei quando trabalhei no hotel, como a boa gente que também nós, os portugueses e os islandeses, somos.
Portugal tem um longo histórico de emigração, tanta dela clandestina e feita por razões de imperiosa necessidade, a mesma que leva hoje a que tantos milhões abandonem as suas terras, as suas famílias, as suas raízes, para enfrentar o destino em parte incerta, em
distantes países com culturas tão diferentes das próprias origens. Basta um olhar mais “humano” sobre o fenómeno para compreender que quem emigra vai sobretudo à procura de melhores condições de vida, que não tem culpa da guerra ou da ditadura ou da miséria ou da necessidade que o impele a dar o salto em frente, tantas vezes no escuro.
Portugal é um país de paradoxos. O mesmo povo que deu “novos mundos ao mundo”, que possui uma diáspora de aproximadamente metade da população residente, que deu origem a dezenas de milhões de luso-descendentes espalhados por todo o globo, tem agora um considerável número de habitantes que acolhe ideais de extrema-direita, disfarçados ou não. É óbvio que a imigração traz consigo um conjunto alargado de desafios e tensões. O que lamento é que este tema seja utilizado como arma de arremesso político, de demagogia, de populismo, de manipulação dos factos para nos emparedar a todos perante a falsa questão da insegurança e das ameaças culturais iminentes. A face pretensamente amigável da retórica que clama por valores identitários e securitários esconde o desprezo pela diferença, a insensibilidade perante o “outro”, a doutrinação para a desconfiança, numa primeira fase, e para a hostilização, por fim. E no meio da avalanche de desinformação, as soluções propostas por essas forças reafirmam sempre a tónica no controlo absoluto, nunca incidindo no acolhimento e integração. Quem explora e beneficia da mão de obra imigrante precária e mal remunerada? Quem não se importa com os centros urbanos cravejados de turistas estrangeiros (porque esses trazem o dinheiro), mas finge não ver o imenso e imprescindível trabalho “invisível” que lhes é prestado (e a nós) por imigrantes nas cozinhas, nas limpezas, nas entregas, nas fábricas e na agricultura? Que fenómeno é este que vê transitar desavergonhadamente tantos quadros políticos da social- democracia para a direita radical? Que normalização é esta de um cenário que há poucos anos se afigurava uma miragem?
Curiosa ainda, e na minha opinião abjeta, é a pretensa identidade cristã assumida pela extrema-direita. Não sou cristão, mas se há coisa que admiro na doutrina de Cristo, é o ensinamento do amor ao próximo. Analisando bem, a questão até poderá ser compreensível, só pode ser uma questão de limitação na capacidade de interpretação. É que quem vem de fora vem de longe, não estava próximo!
Paulo Ricardo Moreira