Opinião
Dizia alguém que:” quem não vive para servir não serve para viver”. Esta expressão sempre foi inquietante para mim ao longo da minha vida. Já no seminário, esta frase ia adensando-se cada vez mais e ia começando a ganhar sentido o meu ser e a minha ação como pessoa neste mundo. Com a morte do meu pároco, padre Ângelo Ruela, reitor do Monte do Concelho da Murtosa, eu decidi deixar o trabalho para encetar uma nova fase da minha vida: estudar, ingressar no seminário para assim o poder substituir. Este ideal de “viver para servir” atirava-me para algo com uma grandiosidade forte, exigente, mas que me fascinava, que me realizava profundamente. Eu não queria viver de um modo medíocre, vegetativo. Pensava para comigo que devia ser muito triste morrer sem se prestar para nada. Por isso eu desejava doar a minha vida aos outros de modo pleno. Para mim esta expressão não foi só uma simples frase de pagela, mas encerrava muito conteúdo que foi plasmando a história da minha vocação.
Hoje, às portas do jubileu que marca um quarto de século da minha ordenação presbiteral sinto-me feliz e realizado não porque tenha alcançado a meta (cf. Fil. 3, 12-21) não porque a obra está terminada, mas porque adquiri mais experiência espiritual e pastoral para continuar a obra até ao términus da minha vida neste mundo. Nestas coisas de Deus nada começa e nada acaba em nós. Temos de ser humildes para perceber isto. Somos meros colaboradores da obra da redenção em cada tempo e em cada lugar. Tenho consciência que nem sempre acertei, mas também tenho consciência de que também não errei sempre. As decisões pastorais tomam-se nos devidos tempos. Nenhuma comunidade é igual à outra. As decisões pastorais não obedecem estritamente a uma e mesma escola de Teologia Pastoral. Temos que adequar a fé e a espiritualidade cristã aos filhos deste tempo e para este tempo, caracterizado por mudanças abruptas a nível da cultura, do pensamento, da religião, etc. Não há “copy paste” de experiências pastorais do passado para as implementar hoje. Não se trata de dizer não à disciplina e às regras. Trata-se de adequar o conteúdo da Fé, sem distorcer a fé, mas alterar a forma como se comunica, vive e celebra a fé hoje. O Papa Francisco na Sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho) e noutras intervenções que tem feito à Igreja e ao mundo, repetidas vezes nos tem aflorado o problema e dá diretrizes de como se pode combater o problema: com ousadia e criatividade. Portanto, estamos num tempo em que é pedido ao presbítero deste tempo que seja pastor ousado e criativo em modo de saída com cheiro a ovelha para contactar com os homens e mulheres deste tempo com as suas angústias e alegrias e colocar-se ao serviço do evangelho no serviço aos irmãos. Penso que não vale a pena inventar muito, é preciso olhar o modo de viver de Jesus Cristo e interiorizar os conteúdos essenciais da fé para acertar fé e vida coerente com a fé e fazer a devida adequação aos novos tempos e aos novos desafios. Não podemos ter medo de errar. Só não erra quem é santo como Deus. Não se pretenda do presbítero que seja um super-homem. Ao presbítero de hoje exige-se que aproxime o seu modo de ser e de estar ao jeito e ser de Jesus Cristo Bom Pastor modelo dos atuais pastores. Quanto a mim Deus me dê vida e saúde para continuar a servir a Igreja e a sociedade mais vinte e cinco anos. Irei errar algumas vezes? Talvez. Mas com a força da Graça de Deus e com a ajuda corresponsável do Povo Santo de Deus, também irei ultrapassar o erro e empreender caminhos novos de renovação eclesial e social.
No dia 02 de janeiro de 2000 fui ordenado presbítero na Catedral de Aveiro pelas mãos do saudoso D. Manuel de Almeida Trindade. Dia solene e sublime. Devo dizer que foi uma opção refletida e amadurecida na base da responsabilidade e na liberdade. No entanto, devo dizer também que, passados estes anos, eu não tinha bem a consciência da grande responsabilidade que estava a assumir perante Deus e o mundo. Bom, se calhar se eu estivesse à espera de ter todos os requisitos pastorais, teológicos, psicológicos da missão, se calhar, ainda hoje estava por decidir o rumo a dar à minha vida. Temos que confiar. Eu tive que confiar. Como Maria, Mãe de Jesus, que perante as dúvidas tinha a certeza de que Deus não a enganava nem a podia enganar decidiu aceitar o convite de Deus para ser a mãe do Redentor. Também eu movido por esta certeza que Deus me iria acompanhar ao longo da missão, decidi ser ordenado. Tão nobre missão, mas tão exigente. Hoje, sinto que daria o mesmo passo apesar da exigência comunitária e das enormes rasteiras que, às vezes, a vida e a sociedade nos colocam. Apesar das contrariedades, o saldo é francamente positivo. Sinto-me feliz. O que de facto conta é que a opção foi bem feita. Foi difícil porque tomar decisões na vida, tem de se fazer um bom discernimento. Também se torna difícil fazer o devido discernimento porque temos que confiar e escutar permanentemente a voz do espírito de Deus em nós. Quer dizer que a vocação não é só uma mera escolha daquele que decide ser padre, mas tem de contar sempre com a ajuda da graça e da vontade de Deus que se funde numa única vontade que se materializa naquela pessoa vocacionada. Fui eu que disse sim, mas foi também a força da alma trinitária de Deus que disse sim comigo. Preparou-me e assumiu juntamente comigo essa decisão. Por isso é que o padre apesar do seu pecado, é uma instituição divina que nada nem ninguém pode derrubar. É claro que este mesmo raciocínio também se aplica, de alguma forma, a todo o batizado. Sendo assim, uma verdadeira opção, de fundo, só pode converter-se em alegria e serviço. Dou Graças a Deus e a tantas pessoas que passaram pela minha vida nestes 25 anos de presbítero. A diaconia no seio da igreja é uma tarefa que convida todo o cristão à simplicidade e à humildade de si. Todo aquele que quiser ser grande terá que ser servo de todos. (Mc. 10-43-45) Servir é o cerne da missão da Igreja, mas pressupõe disponibilidade interior e exterior e prostração, isto é capacidade de sacrifício e de humildade para lavar os pés dos irmãos todos os dias, “…sendo Eu Senhor e Mestre vos lavei os pés também de igual modo deveis lavar os pés uns aos outros…(cf. Jo. 13, 15-17). Contas feitas, ainda somos inúteis servos porque fizemos o que devíamos ter feito (cf. Lc. 17,10). Tal como o Mestre da Galileia, Jesus Cristo, todo o vocacionado deve estar disponível para o serviço da missão e sempre numa atitude de obediência a Deus.
Qualquer opção implica riscos. O segredo do sucesso da vida do ministro ordenado está em fazer escolhas claras e distintas na base do ser e não do ter. É de todo importante um coração indiviso que não esteja apegado às coisas deste mundo. Bem como, o ministro ordenado, não deve ter como primeiro objetivo os interesses pessoais, mas os interesses de Deus e do Evangelho. Deve também assumir a obra missionária não como um poder, mas como um serviço ao serviço de Deus e ao serviço do Bem comum. Portanto o sucesso do ministro ordenado deve assentar no compromisso do que se quer, no espírito de sacrifício, nos valores. Apostar naquilo que nos realiza realmente como pessoas. Neste sentido há que olhar hoje para a componente vocacional dos nossos jovens e apostar na formação para os verdadeiros valores e princípios que os motiva e os faz ser artífices da sua própria existência. Dêmos-lhes tempo e espaço para irem absorvendo aqueles assuntos que os preencha. Tenho a certeza que a Fé cristã pode ajudar muito no assumir de tarefas que ajudam os nossos jovens a crescer em sabedoria, em estatura e em Graça como aconteceu com Cristo (Lc. 2, 52). A propósito do tema dos jovens e a vocação ao ministério ordenado penso que nos faz bem revisitar a Exortação Apostólica Pós- sinodal “Pastores Dabo Vobis” (Eu vos darei pastores) de São João Paulo II sobre a formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais, de 1992. Logo no primeiro capítulo no número 8 a exortação refere-se aos inúmeros obstáculos e solicitações na educação dos nossos jovens no que se refere ao desenvolvimento da vocação sacerdotal nas crianças, nos adolescentes e nos jovens. Desde logo, refere o documento, que o fascínio da sociedade de consumo é muito forte sobre eles. Tal realidade, torna-os “submissos e prisioneiros de uma interpretação individualista, materialista e hedonista da existência humana. O “bem-estar”, entendido materialmente, tende a impor-se como único ideal de vida, um bem-estar que se obtém a qualquer preço: daqui a recusa de tudo o que exige sacrifício e a renúncia a procurar e a viver os valores espirituais e religiosos. A “preocupação” exclusiva do ter suplanta o primado do ser, com a consequência de se interpretarem e viverem os valores pessoais e interpessoais não segundo a lógica do dom e da gratuidade, mas segundo a lógica da posse egoísta e da instrumentalização do outro”. Materialmente falando a vida atual tomou proporções de tal ordem que os nossos jovens às vezes, mais parece, temos que os convencer, “comprando-os”, para eles virem à Eucaristia ao Domingo, convencê-los a que tenham uma vida mais comprometida com a Igreja e com o mundo. Eles, com uma vida de Fé racional e subjetiva facilmente se descartam do compromisso para dar corpo ao ateísmo e à indiferença. Alem disto surge o problema da sexualidade humana. Prossegue o documento dizendo que: “a sexualidade humana por vezes se reduz a um bem de consumo, perdendo a sua dignidade de serviço à comunhão e à doação entre pessoas. A experiência afetiva de muitos jovens resolve-se não num crescimento harmonioso e alegre da própria personalidade que se abre ao outro no dom de si mesmo, mas numa grave involução psicológica e ética, que não poderá deixar de ter graves condicionamentos sobre o amanhã dos jovens. O documento realça outro desafio a enfrentar no mundo juvenil que tem a haver com a liberdade versus libertinagem: “Na raiz destas tendências está em muitos jovens uma experiência distorcida da Liberdade. Bem entendida, a liberdade deveria ser obediência à verdade objetiva e universal quando muitas vezes ela é entendida e vivida como adesão cega às forças do instinto e à vontade de poder de cada um de um modo subjetivo. Portanto, os nossos jovens, no plano da mentalidade e do comportamento, enfrentam o desmoronamento do consenso sobre os princípios éticos e no plano religioso envereda pelo caminho do ateísmo ou pelo caminho da indiferença. Conclusão, a vida juvenil, nos seus momentos mais significativos e nas suas opções mais decisivas, acaba por ser construída como se Deus não existisse.
Num tal contexto, torna-se difícil não só a realização, mas inclusive a própria compreensão do sentido de uma vocação ao sacerdócio, que é um específico testemunho do primado do ser sobre o ter, é reconhecimento do sentido da vida como dom livre e responsável de si mesmo aos outros, como disponibilidade para colocar-se inteiramente como sacerdote ao serviço do Evangelho e do Reino de Deus. Este é o senário que ainda hoje se vive o mundo juvenil e familiar, com tendências a agravar. A braços com famílias precárias, destruturadas, com graves problemas na relação interpessoal, conjugal e filial. Problemas na vida económica e financeira, violência doméstica, divorcio, uniões de facto, etc. Pergunta-se que ambiente familiar, social e até eclesial saudável existe para que as crianças, adolescentes e jovens possam fazer escolhas acertadas e equilibradas? Continuando a reflexão do Santo Padre: “Também no âmbito eclesial o mundo dos jovens constitui, tantas vezes, um “problema”. Dado que neles, ainda mais que nos adultos, está presente uma forte tendência para a subjectivização da fé cristã e uma pertença apenas parcial e condicionada à vida e à missão da Igreja, torna-se difícil, por uma série de razões, lançar na comunidade eclesial, uma pastoral juvenil atualizada e corajosa: corre-se o risco de deixar os jovens entregues a si mesmos, na sua fragilidade psicológica, insatisfeitos e críticos perante um mundo de adultos que, não vivendo de modo coerente e maduro a sua fé, não se lhes apresentam como modelos credíveis. Torna-se então evidente a dificuldade de propor aos jovens uma experiência integral e envolvente de vida cristã e eclesial e de os educar para ela. Assim a perspetiva da vocação ao sacerdócio permanece longínqua dos seus interesses concretos e vivos.”
Ao longo destes 25 anos de vida presbiteral fui assistindo, na nossa diocese de Aveiro a um certo “desaire” vocacional. Temos um presbitério reduzido e muito idoso. O presbítero mais novo tem 31 anos e o mais idoso tem 97 anos de idade. Ao todo a diocese de Aveiro conta com 80 padres. Os diáconos permanentes são cerca de 40 elementos. Um outro dado interessante é saber que, na nossa diocese, desde ano 2000 até 2024/2025 morreram cinco Bispos, 70 padres e 12 diáconos permanentes. Ao passo que no mesmo período de tempo foram ordenados 19 padres e 27 diáconos permanentes. Dá que pensar a desproporção que existe entre o número de clérigos falecidos (88 elementos) e o número de clérigos ordenados (46 elementos) . Temos uma média de 3/4 anos sem ordenações. Não estávamos habituados a esta crise sem precedentes. Os padres saem das famílias cristãs estruturadas e equilibradas. As comunidades cristãs necessitam de pastores segundo o coração de cristo Bom Pastor. Os trabalhos pastorais multiplicam-se e o terreno é árduo e exigente. Hoje estamos a servir as mesmas paróquias (101) com menos recursos humanos. A diocese de Aveiro tem de contar com os leigos devidamente formados para ajudarem no anúncio da Boa Nova do Reino. É verdade que temos muitos agentes de pastoral nos nossos arciprestados e paróquias, mas precisamos de ainda mais trabalhadores para Messe do Senhor: “a Messe é grande, mas os trabalhadores são poucos” (Lc.10, 1-9). Também é verdade que temos hoje mais dificuldade em cativar agentes de pastoral jovens. Não é fácil encontrar pessoas que assumam alguns serviços nas paróquias, de um modo estável. Daí a necessidade de, num futuro próximo, termos de nos reorganizar no território diocesano de uma outra forma. Segundo diz o bispo diocesano que temos de arranjar novas formas de presença e de anúncio do Evangelho no território diocesano. O nosso prelado, D. António Manuel Moiteiro Ramos, enviou para todos os Diocesanos a Carta Pastoral intitulada “Deus caminha connosco” traçando alguns objetivos pastorais para três anos (2025-2027). O D. António está connosco há cerca de 10 anos e fruto de alguma experiência entre nós, ele chega à conclusão que é preciso mais “mão de obra” e mais qualificada. Face à escassez de clero temos de assumir a postura de sermos uma igreja onde deve reinar a corresponsabilidade ministerial e sinodal. Quer isto dizer que, a seu modo, a função de governo, de ensino e de santificação que nos confere o Batismo tem de ser assumido e exercido, mais profundamente, por todos. De que forma? Todo o batizado, através dos diversos serviços ou ministérios que a igreja tem como o serviço de leitor, cantor, catequista, acólito, etc, onde se reflita a harmonia das diferenças, típico da comunhão, mas também apela a uma nova imagem de ser igreja em termos de sinodalidade, isto é todos os membros, correponsavelmente, trabalhem em conjunto, num mesmo caminho, num único e mesmo sentido que é Cristo Ressuscitado. Para que isso aconteça é necessário que todos encetem caminhos de conversão pessoal e comunitária para a haver renovação de pessoas e estruturas. Penso que estamos à vontade para perceber que não é possível “fabricar mel sem abelhas.” Não é possível que um reduzidíssimo número de padres e diáconos permanentes sejam suficientes para responder a tantas e tão numerosas solicitações. Há um cansaço generalizado que leva à doença por parte de alguns presbíteros. Outros há que entram em crise no exercício do seu ministério. Temos que ser claros. Daí que, o bispo diocesano, deseje criar as chamadas “comunidades pastorais.” Podemos dizer que, de uma forma sobranceira, as comunidades ou unidades pastorais são comunidades que pela sua proximidade e homogeneidade trabalham em comunhão e solidariedade pastoral umas com as outras e que o bispo confia a um presbítero ou equipa de presbíteros. Pede-se a todos os diocesanos que se abram à voz do Espírito santo de Deus para que todos em conjunto possamos dar resposta favorável aos homens e mulheres deste tempo. Não há tempo para carpir, nem para lamentar. Não há culpados. Há a Esperança de que estes e outros desafios vão sendo solucionados a seu tempo. Termino este trabalho com uma espécie de doxologia final do Sr. D. António Moiteiro.” O processo de construção da comunhão exige participação consciente e responsável. Procuremos estar em diálogo contínuo uns com os outros sob a ação do Espírito Santo. Todos devem assumir que a renovação exige conversão das pessoas e das comunidades. Não tenhamos medo de arriscar quando se trata de fazer opções pastorais. A diocese de Aveiro sonha com comunidades cristãs que coloquem Cristo ressuscitado no centro da sua vida, vivam a comunhão como o sinal visível dessa presença e formem discípulos missionários que saibam dar razões da sua fé. Abrace cada um o caminho do renovamento conforme lhe for inspirado pela graça do Espírito de Deus, lembrando que para um conhecimento mais profundo da palavra de Deus é fundamental a oração.” (Carta Pastoral- Deus caminha connosco, nº 5).
Nicolau Barroqueiro
Sacerdote