Opinião
Era uma vida doce a minha, mas dura. Era assim que vivia naqueles dias, sem poiso fixo, sem rotina certa, sem horas para o que fosse. O nascer e o pôr do sol, ditavam todos os ritmos. O frio enganava-o com o crepitar de uma fogueira noite adentro.
Não pertencia a nada, nada me pertence, apenas o dia e aquilo que estamos a ser, a fazer, a cuidar a cada momento. O mundo era o meu rebanho e a natureza que o alimentava.
Era temente a Àquele de quem não se podia dizer o nome, como qualquer outro judeu. Os meus sacrifícios eram feitos do altar da terra prometida, não nos templos. O vestir e o comer era o nosso de cada dia. Nada mais.
As paredes do meu quarto eram abrigo de pedra forradas a flores do campo, o chão a erva fresca e doce de orvalho. As copas das árvores, baixas nestas terras davam-me o tecto necessário junto do estábulo.
A minha língua era a do silêncio, a de quem vê o mundo e aprende a cada passagem.
Como um nómada migrante que guiava as ovelhas por onde houvesse pasto, a minha família estava distante, quase como se eu não tivesse raízes, era assim que o mundo me via, me discriminava.
O judaísmo preza as origens, a linhagem, a família, a terra, a que nos foi dada em promessa e que teimamos não partilhar com os outros, delimitando nomes e espaços.
Era por isso que não nos viam com bons olhos. Os pastores são vagabundos que correm a terra por onde alcança o verde para as suas ovelhas, que dariam a lã que os fariseus e os sacerdotes do templo haviam de vestir.
Seriamos os últimos a ver um Rei, seja qual ele fosse que viesse.
Estranhei o vento tranquilo de uma noite, fria e silenciosa. Não havia vento, as estrelas do céu cintilavam e uma mais que as outras. O silêncio era absoluto, como se antecipasse alguma coisa.
Ouvimos a notícia de uma criança que acabara de nascer num dos estábulos dos nossos.
Não havia lugar na estalagem para uma mulher prestes a dar à luz. Eram oito, os dias de impureza nela e em quem quer que lhe tocasse.
Ficou no calor do abrigo de um dos meus. O pobre acolher o pobre, o rejeitado acolhe o rejeitado e é assim que o deixamos de ser. O acolhimento passa a reinar.
Foi curioso, mas com medo que me cheguei perto e entrei. Levei comigo o cordeiro mais pequeno, com a lã mais limpa e macia. Um pequenino bebé, acabado de nascer sentir-se-ia seguro e quente, envolvido pela sua mãe, como se o próprio Deus o pegasse no colo.
Há sempre paz junto a uma criança que dorme, um certo brilho. Uma solenidade própria de quem está a ver a criação a acontecer naquele instante. A vida como milagre.
A mãe descansava, enquanto o pai nos deu as boas-vindas interrompendo o alimento do borralho onde se aquecia alguma da comida que lhes trouxemos.
Silêncio e contemplação. Ser frágil, de pele macia, envolto em panos e nas palhas de onde os animais comem.
O que nos dirá Ele quando crescer? Que arte será? Pastor excluído como eu? Carpinteiro? Médico? Pedagogo? Será ele um homem de palavras ou de palavra? Será feliz? Terá as suas origens demarcadas? Deixará descendência?
Quem será e o que fará deste tempo que corre desde agora até que parta deste mundo? O que ficará diferente por causa Dele?
Que trilhos terá de correr, ele que começa aqui tão abaixo do mundo, tão invisível. O que farão em nome Dele?
Glória a Ele e paz na terra à Humanidade de boa vontade.
Que Ele traga Paz e que este chão se torne um dia lugar de Paz definitiva e nunca de separação dos povos.
Feliz Natal.
Pedro Neto
Diretor Executivo da Amnistia Internacional em Portugal