Editorial
Chega e vai-se instalando de mansinho. Não pede licença para entrar. Primeiro, nota-se num ou noutro pormenor. É a panela esquecida ao lume, a torneira que ficou por fechar. Entretanto, são os nomes que já não coincidem com os rostos e os rostos que já não existem a serem falados como se ainda vivessem. Chegam comportamentos ilógicos e desorientação espacial. Instalam-se características que não se associavam à personalidade que até ali se conhecia daquela pessoa. E não se trava o declínio – não há como travá-lo –, como não se faz parar a chuva. A demência encharca todos à sua volta.
À boleia do seminário “A Memorizar…”, voltei a refletir sobre o que já tantas vezes me tinha debruçado. Convivi e convivo de perto com a demência. A uma das minhas avós, que já nos deixou, foi diagnosticada Alzheimer e a doença e ela foram indissociáveis nos últimos anos da sua vida. À outra, que se encontra atualmente institucionalizada, demência apenas – sem um nome ou uma causa concreta associada. Nem por isso menos dolorosa, contudo.
Digo muitas vezes que lidar de perto com a demência é algo que nos obriga a fazer dois lutos da mesma pessoa. Um primeiro, quando a doença se instala. O outro, quando chega ao fim a vida daquela pessoa. Sendo que, entre um momento e outro, podem passar muitos – longos – anos.
Não será difícil de perceber o sofrimento inerente a olharmos para uma pessoa que conhecemos a nossa vida toda, como no caso de uma mãe ou de uma avó, que mantém inalteradas as suas características físicas – o que nos dá a falsa sensação de normalidade –, e que, de repente, não nos responde como respondia, não sabe o nosso grau de parentesco, desconhece o nosso nome. Resta pouco mais do que uma sensação brutal de impotência e de angústia. E dúvidas, muitas dúvidas, muitas questões, sobre como lidar com a situação, por um lado, e como prestar os melhores cuidados àquela pessoa que amamos, por outro.
O ideal, para minimizar a complexidade do processo, seria que todos os cuidadores de doentes com demência fossem acompanhados por especialistas. Se o são? Não. Aos cuidadores exige-se que batam a várias portas e que experimentem diversas chaves, até encontrar uma que gire na fechadura. A sociedade não está preparada para abrir essas portas com um simples trinco. Faltam respostas a quem está doente e a quem cuida. E cuidar, mesmo que com amor, dói. Faltam agasalhos para que a chuva não molhe tanto os corpos.
Salomé Filipe
Diretora do Jornal