Acabou a guerra. Acabou a censura. Acabou o clima de suspeição permanente. Acabou o isolamento do país. Acabou a apologia da pobreza. Acabou a emigração a salto. Acabou a discriminação ostensiva das mulheres. Acabou a elite das boas famílias. Acabou a diabolização da política e dos que pensam diferente. Acabou o culto acéfalo do líder (dito) genial. Acabou o Portugal dos pequenitos que não era mais do que o Portugal dos grandes. Acabou um pesadelo com 48 anos que ainda hoje nos dá dores de cabeça.
O 25 de abril de 1974 foi um verdadeiro renascer do país. Representou não só uma mudança de regime mas a devolução do país aos portugueses, ou seja, derrotou-se a tese sinistra que não sabíamos governar-nos nem ser os senhores do nosso destino. Que ditadores tão mesquinhos e tão pouco confiantes do “seu” povo: nunca mereceram a honra se assumir o poder porque nunca respeitaram de quem emana esse poder, que não é senão o povo.
E deixaram muitas vítimas. As lágrimas dos que partiram. Os que morreram por fora ou por dentro nas guerras coloniais. Os que, constrangidos pela força bruta ou impelidos pela convicção moral, tiveram de procurar pátria na Europa ou no norte de África. Os que não encontravam sustento na sua terra e iam ser os ocupantes dos bidonvilles e dos “sonacotra”s, sentindo-se cidadãos menores e agradecidos de países europeus que não podiam respeitar-nos. Os que partiram se si, engolindo as lágrimas e a raiva e anulando-se para sobreviver. Os que não conseguiram minimamente a sua realização pessoal e profissional só porque não nasceram no berço certo.
Com a falsa capa da ordem, da moral e do legado ancestral, a ditadura esteve sempre do lado errado da história, com as suas saudações romanas e a legião portuguesa à alemão, com o virar de costas à Europa e ao mundo, com perda de qualquer autoridade moral sobre as colónias, com a tola tentativa de evitar a modernidade (nas artes e cultura, nos consumos, etc) e as novas expetativas (intelectuais e de comportamentos).
Uma ditadura, isto é, a imposição controlada de formas de estar e de parecer afigura-se hoje impossível porque as pessoas habituaram-se à liberdade e não parecem aceitar nenhum condicionalismo à sua atuação mas, por outro lado, há sinais de alarme, com movimentos populistas que nos fazem lembrar muito aqueles que sobressaíram há um século.
Hoje, como sempre, o grande desafio é encontrar respostas políticas para os problemas e anseios das pessoas. Respostas sérias e efetivas, que vão ao essencial das questões e que não se iludam com vozearia, recriminações e bodes expiatórios que, por vezes, sofrem com as mesmas situações.
Em 74 dizia-se que o povo estava com o MFA. E estava. Estava com a poesia feita armas. As armas que, por uma vez, só dispararam cravos…para espanto do mundo todo. Essa mesma poesia com que Sophia de Mello Breyner Andresen qualificou o que aconteceu a 25 de abril:
“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”
Este é o tempo de voltar à poesia e celebrar abril. Outro peta maior exclamou “foi bonita a festa, pá”, porque sentiu os foguetes e exaltou (ao longe) com a libertação e esse foi o anunciar de uma época de novas exigências.
Temos muitas razões de queixa mas temos também ganas, competência e vontade de fazer. Ouçamos o apelo de Manuel Alegre
“Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.”
Para quem não é poeta, e até para aqueles que dispensam devaneios líricos, temos é que viver Democracia com todas as letras. Saborear a liberdade e fazer da liberdade a força decisiva para das nossas diferentes forças e convicções sabermos construir um Portugal mais justo, mais próspero e coeso. Viva o 25 de abril.
Óscar Gaspar
Presidente da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia de Vagos