Opinião
“…. No percurso fomos algumas vezes incomodados pelos lobos que nos atacavam, já nos Pirenéus…”
Esta frase está no livro de Manuel Martins Costa, de título “A gesta do emigrante pioneiro” relatando episódios reais da Gafanha da Boa Hora e do seu povo nos anos 50 até 2008. Terminada uma leitura de uma forma de sofrimento que levava os gafanhões a procurar trabalho no estrangeiro, imaginei que aqueles guerreiros estão agora retratados (o lado mais pobre) no livro que estou a ler de Lídia Jorge.
“Misericórdia” é o título que me despertou a atenção. Todos conhecemos a benevolência da amplitude semântica desse termo.
As palavras escritas são a narrativa da vida de uma senhora idosa durante o último ano da sua vida numa residência para a terceira idade, construída a partir da conversão de um hotel: o Hotel Paraíso. Nome fictício, mas ao qual se associa, por um lado, o simbolismo de um lugar de bem-estar e de felicidade, o céu e, por outro, nele se antevê a ironia, pois todos sabemos, mais ou menos, que as instituições com este fim não são habitualmente vistas como paraísos.
A narrativa sobre a idosa que, na vida real, é uma senhora de posses que decide instalar-se nesta residência, soa melhor que o lar. A idosa desde que começou a sentir o peso da sua incapacidade física para cuidar de si, decidiu instalar-se neste hotel de muitas estrelas. Como não conseguia ler como lia antes e escrever a sua história, já não tinha força para segurar as canetas, os papéis e os livros, nas suas mãos cada vez mais débeis, tem um pequeno bloco de folhas brancas A8, onde vai escrevendo, a custo, com um lápis pequeno, pequenas frases, pequenas notas, pequenos versos. Além disso, tem um gravador para o qual vai falando. São deliciosos os diálogos da idosa com a filha, com a qual procura manter uma relação de autoridade maternal. Diálogos onde respiramos o cruzamento entre a realidade e a ficção.
Trata-se do relato dos acontecimentos que vão decorrendo naquele lugar, vistos por quem os vive. Das rotinas diárias pautadas pelas horas da higiene, das refeições e da medicação, do levantar e do deitar. Dá-nos o testemunho das rivalidades entre os utentes, das paixões, dos ciúmes, dos arrufos, das conversas sobre o passado, da perceção que têm da vida lá fora, dá outra vida, aos que assistem sentados nos cadeirões ou nas cadeiras de rodas, as “charretes” como muitas lhe chamam, alinhadas num grande Salão Rosa, frente a uma televisão que os adormece e anestesia. Revela-nos as suas forças e as suas fraquezas.
Nos dias de festividades e horas destinadas às visitas há interrupções no calendário, dos outros dias, que mal se distinguem. Vestem-se ou vestem-nos com os melhores fatos. Penteiam-nos com mais cuidado. Neste livro, não assistimos apenas a episódios tristes, alguns motivados por comportamentos de falsos tratadores, assistimos, de igual modo, a atos de humanidade e amor por parte de outros que deles cuidam delicadamente, os acarinham como se fossem seus, que os respeitam. Em todos os lados da vida há os dois grupos. De uma forma brilhante, leva-nos a uma reflexão aprofundada sobre aquilo que nos espera, a uma tomada de consciência sobre a inutilidade da vida a partir do momento em que deixamos de servir para uma sociedade que valoriza o trabalho, o rendimento acelerado, o materialismo desenfreado, a ascensão social alucinada, sem tempo para viver e para amar. Não é fácil ler um livro como este, que nos coloca questões, que nos interpela, que nos provoca, que nos desafia. Trata-se de um exercício de leitura de uma beleza cruel. Faz-nos parar e indagar o sentido justo da vida.
Misericórdia!
Voltarei….e todos devemos ter um final de vida com sentido de justiça humana.
Joaquim Plácido