Entre o direito de propriedade e o direito à habitação
Opinião
A grande questão que se tem levantado sobre o pacote de medidas “Mais Habitação”, refere-se ao caráter impositivo das medidas restritivas do direito de propriedade, designadamente a questão do direito do arrendamento forçado.
Em primeiro lugar, esclarecer que a questão do arrendamento subdivide-se em dois regimes:
● o Arrendamento Voluntário, uma modalidade que permite arrendar ao Estado, através do IHRU, e depois o Estado subarrenda, através do Fundiestamo, que fica com a gestão, e;
● o Arrendamento Forçado, um instrumento de intervenção das Câmaras Municipais e que já possui enquadramento jurídico: a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos (LBS), que nos transmite uma perspetiva publicista do Direito da Propriedade (existem duas perspectivas do direito de propriedade, a perspetiva privatista, e a publicista, seguida pelos Tribunais Administrativos e pelo Tribunal Constitucional, onde a propriedade desempenha uma função social inerente ao próprio direito de propriedade).
Destaquemos que o Direito à Propriedade não é um direito absoluto. Engloba um conjunto de direitos e, simultaneamente, de deveres. Ou seja, ser proprietário de um terreno, não implica a faculdade de urbanizar, lotear ou construir.
A LBS, no seu art.º 105°, afirma que essas faculdades acrescem ao direito de propriedade, mediante o cumprimento de um conjunto de deveres. Enquanto que o art.º 113°,onde é enunciado o Direito dos Proprietários, menciona o direito de utilizar as edificações de lotear, urbanizar, edificar, reabilitar e de utilizar os edifícios.
Analisando do ponto de vista dos deveres: os proprietários têm o dever de preservar os bens materiais, e, designadamente, o dever de utilizar, conservar e reabilitar os imóveis. Portanto, o direito e o dever de utilizar o edificado. No Urbanismo, um edifício é um imóvel destinado ao uso humano e tem o dever de ser utilizado, na lógica da função social da propriedade.
No art.º 116°, quando refere à imposição da realização de operações urbanísticas, o legislador diz que a Administração pode impor ao proprietário do imóvel a realização de operações urbanísticas necessárias à execução do plano territorial municipal e intermunicipal, incluindo, nomeadamente, a obrigação de nele construir, conservar, reabilitar e demolir, construções e edificações que nele existam, ou de as utilizar em conformidade com o previsto nos planos territoriais.
O Direito de Propriedade deve cumprir a função social, e há restrições que o novo pacote de medidas pretende alargar o âmbito: no regime da Reabilitação Urbana, quando uma obra coerciva era realizada em edifício privado por uma entidade pública, esta podia ressarcir-se, através do arrendamento forçado ou venda.
A Lei de Bases da Habitação (LBH) também apresenta a mesma perspetiva. No art.º 3°, n°6, diz que “o Estado promove o uso efetivo das habitações devolutas de propriedade pública e incentiva o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade privada”. Ou seja, não está dito que o Estado promove a utilização efetiva das habitações devolutas privadas.
No art.º 4°, n° 3, refere que, para garantir a função social da habitação, o Estado deve, prioritariamente, mobilizar o património edificado público, inserindo-o em programas habitacionais destinados ao arrendamento.
E aqui temos o princípio da proporcionalidade: se o Estado é o grande proprietário de imóveis devolutos, então, para satisfazer as necessidades habitacionais, prioritariamente deve mobilizar o seu património edificado.
No art.º 5° da LBH, para se alcançar o uso efetivo da habitação, os proprietários de habitações devolutas estão sujeitos a sanções previstas na Lei, através do recurso a instrumentos adequados. Como é óbvio, o arrendamento forçado não é propriamente uma sanção..
Para a promoção do uso efetivo da habitação devoluta, o Estado e as Autarquias Locais têm o dever não só de atualizar anualmente o inventário do respetivo património com aptidão para uso habitacional, mas também de promoverem o uso efetivo de habitação devoluta de propriedade pública e de incentivar o uso efetivo de habitações de propriedade privada.
Como vimos, a grande questão do arrendamento forçado é: se é exequível ou não. Tudo depende se esta medida se irá traduzir em disponibilização de habitação que é necessária, e se os municípios, mergulhados em transferências de mais e mais competências, farão uso de uma medida, que, à partida, aparenta ser impopular e que irá exigir coragem e vontade política.
Martim Guimarães da Costa,
Arquiteto