Paulo Gravato tomou posse, recentemente, para o seu último mandato como provedor da Santa Casa de Vagos. E antevê quatro anos difíceis de governar
Paulo Gravato tomou posse, em janeiro, para o seu último mandato como provedor da Santa Casa da Misericórdia de Vagos, função que desempenha há quase quatro décadas. Mas o quadriénio que agora inicia não será, no seu entender, fácil. Em causa estão os atuais preços da energia e dos bens de consumo, assim como os investimentos com que a instituição quer avançar. Mas, apesar dos contratempos causados pelos anos de pandemia e pela guerra na Ucrânia, a audácia do provedor, aos 72 anos, mantém-se. Ao Eco de Vagos, Paulo Gravato faz uma retrospetiva do trabalho que tem levado a cabo na Misericórdia de Vagos e desvenda quais são as últimas missões que terá em mãos.
Já anunciou que este será o seu último mandato como provedor. Porquê?
Primeiro, acho que uma pessoa com 75 ou 76 anos, que é a idade que eu terei quando o mandato terminar, deve dar lugar a outro. Além disso, pela lei que entrou em vigor em 2014, também tenho a limitação de três mandatos consecutivos. A legislação está para ser alterada. Mas, mesmo que seja revista, não farei mais nenhum mandato.
Entrou para a instituição em 1982, como tesoureiro. E está desde 85 como provedor. Como era a Misericórdia de Vagos, nessa altura, agora que olha para trás? Que salto deu?
Houve um salto enorme. Quando entrei, havia um edifício com 30 ou 40 crianças, na creche e centro infantil. Tínhamos 15 ou 16 empregados. Era uma coisa muito pequena, como uma família. Até porque, até aí, as mulheres não trabalhavam e ficavam em casa com as crianças. Foi nessa altura, após o 25 de abril, que houve uma explosão das IPSS no país. E a Santa Casa de Vagos teve um problema na direção. Eu tinha aqui a minha filha, na creche, e trabalhava num banco. Começaram a pedir-me para integrar a direção e acabei por ficar como tesoureiro.
Hoje, temos 150 funcionários e um património enorme, com todas as valências.
Os primeiros anos foram os mais difíceis?
Sim, esses primeiros anos foram muito difíceis porque não havia fundos europeus nem subsídios. Era muito difícil conseguir-se algum dinheiro para conseguir fazer o que quer que fosse. Era preciso concorrer a tudo e mais alguma coisa.
O Centro Infantil foi feito pelo Estado. A partir daí, pensou-se na parte da terceira idade e fez-se um centro de dia. Mas não resultou, porque as pessoas queriam um lar e não um centro de dia. Por isso, pensámos em construir o lar. Aí, houve alguns apoios, mesmo da população e da Segurança Social, e conseguiu-se fazer a obra. Só mais tarde é que surgiram os fundos europeus, após a entrada na CEE.
Na sua tomada de posse disse que este ia ser um mandado difícil. Porquê?
Tivemos três anos de pandemia, que foram muito difíceis, em termos de sustentabilidade, para as instituições. Pô-las a todas em baixo e a nossa não foi exceção. Depois, começou a guerra, o que piorou a situação.
Posso dar o exemplo da energia, que foi onde sentimos mais. Gastávamos de gás seis a sete mil euros por mês. Hoje, são 15 a 16 mil. E tivemos um mês, novembro, em que foram 25 mil de gás. Depois, tomámos algumas medidas para a contenção.
Em termos de energia elétrica, as coisas não foram tão graves porque colocámos painéis fotovoltaicos e conseguimos reduzir 25% da fatura. Mas a maior parte dos equipamentos funciona a gás natural. Não nos podemos esquecer que, só em aquecimento, temos o Centro Infantil, a fisioterapia e depois os dois lares – a Estrutura Residencial para Pessoas Idosas e a Casa de Acolhimento Residencial [para crianças e jovens do sexo feminino].
Fora a energia, que fez aumentar o custo de todos os bens, temos a questão do ordenado mínimo dos colaboradores. Só aí, é um aumento de 6 a 7% ao ano. Este ano, 2023, tem um impacto de 11,5% de aumento, porque, além do ordenado mínimo, tivemos que ajustar a restante tabela salarial. Estou a falar apenas de custos reais daquilo que é a gestão diária de uma instituição
Mas falta também os investimentos que querem fazer…
Sim. Temos duas obras programadas para este ano e, como tal, temos que recorrer à banca e endividarmo-nos. Uma vai dar alguma poupança de energia, porque é de eficiência energética. Consiste no aumento de soluções térmicas para paredes e telhados, por exemplo. Vai-nos custar 300 ou 400 mil euros e tem que ser iniciada em abril ou maio.
A outra é requalificação da parte antiga do Centro Infantil, que é para onde vai passar toda a parte de contabilidade e de serviços, libertando a zona dos idosos. E inclui o aumento da lavandaria, da cozinha e da parte de economato. Esse investimento foi projetado, antes da pandemia, para 850 mil euros, mas agora já está em mais de um milhão. Vai ser lançado agora o concurso.
E o já anunciado Centro de Demência? Fica de fora?
O projeto está pronto, mas falta financiamento. Como avançámos com estes dois, que eram prioritários – assim como seria um lar novo –, não dá para avançar com o Centro de Demência, para já. O centro de demência está a aguardar que haja financiamento. Só quando abrirem candidaturas na área da saúde, que deem para este equipamento, é que vamos ver se temos capacidade, ou não, para o executar.
Quando diz que era preciso um lar novo, é porque este já não tem capacidade ou porque não tem condições?
Queríamos que as condições fossem melhores. Tanto para os colaboradores como para os utentes. O nosso lar foi feito no final dos anos 80 e, por conseguinte, os quartos não têm casa de banho, são mais pequenos, e não têm casas de banho para pessoas com deficiência. Por isso, queríamos remodelar o antigo e fazer um novo, porque não temos onde colocar as pessoas se fizermos obras. O projeto – que está feito, apesar de ainda não estar aprovado – era de cuidados continuados, para a zona em frente ao atual lar, e remodelar o lar antigo. Mas, para já, não existe capacidade financeira. Pode ser que daqui a alguns anos alguém se lance nisso.
E há mais algum projeto que gostasse de ver concretizado?
As questões do envelhecimento não ficam pelos lares. Há estudos que dizem que, em 2050, 30% da população terá mais de 65 anos. Ou seja, vão ser precisas respostas diferentes, pois não estou a ver o futuro a passar apenas pelos lares. Estou a vê-lo a passar pelo apoio domiciliário, mas um apoio diferente do que existe atualmente. Até porque as pessoas vão ter um tipo de exigência diferente da que têm hoje. É preciso que sejam atendidas, pelo menos, até às 22 horas e, por exemplo, que um médico e enfermeiro passem por casa delas. Só que tudo isso custa dinheiro.
Mas se o Estado fizer como se faz em Espanha, que dá quase 2000 euros por mês à instituição, em vez dos nossos 300 ou 400 euros [por utente], já é possível fazer um apoio domiciliário em condições.
A Santa Casa da Misericórdia de Vagos começou focada nas crianças e, logo depois, estendeu a sua atenção à terceira idade. Mas o vosso trabalho não fica estanque aí, pois têm sempre projetos noutras áreas, como é exemplo o Envolver…
Queremos sempre dar o melhor para população, principalmente a nível daqueles que precisam mais. Por isso é que temos a fisioterapia e projetos de inovação social, como o Envolver e o Memorizar.
A reabilitação física, quando surgiu, tinha como objetivo a sustentabilidade da instituição. Hoje, atende 240 pessoas diárias. Depois, os dois projetos de inovação social resultaram de preocupações que vimos na sociedade. O Memorizar, dedicado à demência, foi tão bem aceite que, quando o financiamento acabou, passou a ser apoiado pela Câmara Municipal.
O Envolver surgiu por causa da comunidade venezuelana que existe no nosso concelho. Procurámos fazer um projeto para que as pessoas pudessem aprender a língua portuguesa e para ajudar na integração delas na sociedade, nomeadamente a nível de emprego. Praticamente todos os que nos pediram ajuda estão empregados. Na altura pedimos autorização para englobar os cidadãos ucranianos refugiados no projeto, porque foi na altura em que rebentou a guerra e também precisavam de aprender a língua. Agora, vamos ver se no Portugal 2030
há mais dinheiro para projetos deste género.
Uma das vossas preocupações passa por estarem atentos aos problemas que afetam a sociedade?
Sim, estamos sempre atentos. Pode surgir outra questão que afete mais a sociedade, principalmente ligada ao envelhecimento. Pratica-se pouco o envelhecimento ativo. Um dos problemas do envelhecimento em Portugal é que as pessoas vivem mais, mas os problemas existem em maior quantidade. Se não houver uma preparação ativa para o envelhecimento, um dos problemas que vai surgir está relacionado com as doenças crónicas, pois não existe prevenção e há poucos cuidados primários. Os municípios têm que começar a estar atentos a isso. Tenho falado nesse assunto, em reuniões da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro. Aquilo que foi feito há alguns anos para as pessoas com deficiência, em termos de arquiteturas de casas, vai ser preciso fazer para toda a população. Tudo isso serão problemas de arquitetura a que as Câmaras vão ter que estar atentas. Só que elas não fazem planeamento.
Com tantas preocupações relacionadas com a sociedade que tem em mente, como se vê, daqui a quatro anos, a deixar as suas funções na Santa Casa?
Eu não me imagino a deixar tudo de lado, claro que posso ser útil. Mas com as preocupações que tenho neste momento, até porque a saúde não ajuda, é impossível continuar com esta atividade. Para além de ser provedor, tenho outras atividades relacionadas com a Santa Casa. Sou, por exemplo, coordenador, junto da União das Misericórdias Portuguesas, de toda a atividade das Misericórdias do distrito de Aveiro e de Coimbra. E sou delegado na Confederação Portuguesa da Economia Social e presidente do conselho fiscal da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social.
Não posso deixar logo tudo, mas vou deixar aos poucos. Quando eu tiver 75 ou 76 anos, não posso ter toda a atividade que tenho agora. Mas sei que posso ser útil. Vagos poderá continuar a contar comigo, nem que seja como conselheiro, se for preciso.
S.F.