Já não tenho avós. Há qualquer coisa na vida que se perde, nem sei bem o quê, quando deixamos de ter avós. Conforto? E qualquer coisa na vida que se ganha, nem sei bem o quê, quando deixamos de ter avós. Apreensão? É que os nossos pais passam a ser os próximos da lista e depois já somos nós. Calma, vida! Estás cheia de pressa. A minha filha ainda tem avós, as coisas têm-lhe corrido bem e ninguém ousou fintar a ordem natural das coisas. Eu é que já não tenho avós. Morreu-me a minha última avó no início deste mês. Os outros três já se tinham despedido há algum tempo mas a minha última avó teimava em agarrar-se à vida. Agora chamo-lhe assim, última avó. Não é só avó. Última avó traz-lhe finitude e, ao mesmo tempo, guarnece-a de uma aura especial. Afinal, foi a última a ser encontrada neste jogo de brincar às escondidas com a morte.

A minha última avó vivia cansada. Muito cansada, há meses de cama. Já nem sabia o que era a vida, veja-se. Mas insistia em viver. Vivia sem viver, a minha última avó. Há quem diga que não parte de nós o fim da vida. Mas eu também não consigo acreditar que partiu dela quando ela já nem sabia o que era a vida. Afinal, ninguém perde o que já não tem. Também não consigo acreditar que outrem lhe trouxe o fim, não fosse ela durante meses a fio um esquecimento da própria vida.

Fui ao funeral da minha última avó. Rituais cumpridos e, por fim, a paz. Foram meses a fio sem saber o que dizer, sem saber o que fazer. O tempo passava, o relógio contava, as memórias. Ah, as memórias. As memórias faziam parte do passado. Foi a partir daquele dia que as memórias começaram a viver no passado e se ausentaram por definitivo de um qualquer tempo futuro. Para ela. Para os corações a que deu vida, a minha última avó continuou a criar memórias. A minha avó foi ao funeral e despediu-se. E os corações ficaram em paz após vários anos de tumulto. Não havia raiva. Não havia desespero. O choro também de alegria. O luto. Mas, acima de tudo, a paz. Porque a dor vivia na persistência da vida.

A minha última avó não morreu. A minha avó Rosa. Nem a minha outra avó. A minha avó Idalina. Nem o meu avô Aleixo ou o meu avô Isac. Persistem em memórias que teimam em ser gestos. Prolongam-se pelas lembranças que vincam personalidades. Os meus avós não morreram mas também já não sabem o que é viver. E está tudo bem porque o tempo diz-me que agora é a minha vez. E de quem vier depois de mim. Tens tempo, diz-me o tempo. Eu respondo-lhe que tenho paz.

Nuno Margarido

Jornalista

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